quarta-feira, novembro 14, 2007

Acerca da Casa do Infante


Breve análise de uma tradição

A mais antiga referência escrita que se conhece relativa à casa em que no Porto teria nascido o Infante D. Henrique, encontra-se na Anacrisis Historial, obra volumosa, profusa e difusa que o seu autor, o revº. padre Manuel Pereira Novais - erudito escritor portuense do século XVII - dedicou à história, sobretudo eclesiástica, da cidade em que nasceu, e da qual cedo se apartou, pois se fixara na Galiza, onde em novo tinha vestido a cógula beneditina no convento de S. Martinho de Compostela. Afirma-se que nessa obra que, correndo o ano de 1394 e estando no Porto o Senhor Rei D. João I em companhia de sua mulher, a Raínha D. Filipa de Lencastre, esta Sereníssima Senhora, aos 4 de Março daquela era, « en los Palacios Episcopales, con felicissimo parto nos dió al Infante Serenissimo Don Enrrique, como dise Gariuay, en su Compendio Historial, lib.35, cap.1º.».
Afirmamos que esta é a mais antiga referência escrita que se conhece relativa à casa em que nasceu o Infante, porque embora Pereira de Novais cite, a tal propósito, o historiador espanhol Estevan de Garibay y Zamalloa, este, no lugar que Novais indica, diz apenas que o « Infante don Henrique, que fue Duque de Viseo e Maestre de Cristus, muy grande cosmographo y valeroso cavallero » nasceu « en quatro del mes de Março (1394), dia miercoles de la Ceniza (...), en la ciudade de Porto »! Nem uma palavra acerca dos paços ou casa em que teria ocorrido o nascimento!
Mas então que valor tem a afirmação de Novais?
Se Garibay é omisso a tal respeito, a afirmação que Novais carece de abonador. Não conhecemos qualquer pequeno indício de que no século XVII, ou em qualquer outra época, anterior ou posterior, houvesse no Porto semelhante tradição! Nem sequer de passagem aludiu a tão honroso facto, como naturalmente o teria feito se essa tradição existisse no seu tempo, o consciencioso historiador D. Rodrigo da Cunha, que foi Bispo do Porto, e vivia nos referidos Paços quando na mesma cidade editou, em 1623, o seu Catálogo e História dos Bispos daquela diocese!
Muito mais tarde, nos fins do século XVIII, um outro sacerdote e escritor, mas este bracarense, o revº. Agostinho Rebelo da Costa, publicou uma valiosa Descrição Topográfica e Histórica da Cidade do Porto (1789), e embora não tivesse deixado de incluir, como devia, o Infante D. Henrique na galeria de Homens Ilustres Portuenses - justamente o classificando como « glória desta cidade, honra do Lusitânio Império e digno de senhorear o Universo » - nada diz acerca da casa em que D. Henrique teria nascido. Há quem pretenda interpretar este silêncio como prova de que nada constava então no Porto a tal respeito.
Não nos parece, porém, que assim fosse, porque pouco depois, nas primeiras décadas do século XIX... tal não acontecia! Sabemo-lo por um modo indirecto. Fundada a Associação Comercial do Porto em 1834, a sua direcção pensou em edificar a sua sede no local « da casa onde nascera o Infante »; e não havendo « documento escrito que dissesse o que a direcção da Associação Comercial desejava » - isto é, documento escrito no qual estivesse indicada a casa em que o Infante nasceu ou, o que equivaleria virtualmente ao mesmo, os paços em que D. João I e D. Filipa seteriam alojado em 1394 - resolveu-se interrogar os documentos de pedra.
Ora os documentos de pedra - isto é, os edifícios do Porto que aquela direcção interrogou - guiada, note-se bem, pelo que corria na voz do povo, foram os da zona da Ribeira! Tudo isto vem relatado num artigo publicado em 26 de Abril de 1894 pelo jornal O Comércio do Porto, artigo esse da autoria do respeitabilíssimo dr. Domingos de Almeida Ribeiro, que fizera parte da direcção da Associação Comercial na época daquelas diligências.
E o mais importante para o nosso caso é que o prédio que mais chamou a atenção e em primeiro lugar foi visitado por esses que se esforçaram por descobrir « a casa em que (no Porto) habitou a família real » nos fins do século XIV, foi o edifício da Rua da Alfândega em cuja fachada, mais de cinquenta anos depois, no Quinto Centenário Henriquino (1894), veio a ser descerrada por El~Rei D. Carlos a placa de bronze em que se lê:

HIC NATUS EST
.............
INCLITUS HENRICUS
.................

É certo que aos directores da Associação Comercial não pareceu admissível a « conjectura » de que uma casa tão mesquinha e tão arruinada, como aquela estava, pudesse ter sido « algum dia palácio real em vida de D. João I ». Puseram tal ideia de parte, e acabaram por desistir do seu propósito, « à míngua de seguros indícios ».
Tudo quanto fica relatado prova, porém, a existência de uma indiscutível tradição popular que levava a crer ter o Infante nascido naquela zona ribeirinha da cidade - ninguém falando nos Paços Episcopais, que século e meio antes, Manuel Pereira de Novais, citando uma autoridade que nem a tal facto se refere, asseverara ter sido o lugar do nascimento de D. Henrique. A tradição popular a que acabamos de aludir, subsistia no ano de 1864 quando, em A Última Dona de S. Nicolau, Arnaldo Gama escrevia:

- « A Bolsa do Comércio (do Porto) estava estabelecida em 1474 no primeiro andar de uma casa que El~Rei D. João I, a requerimento da cidade, mandara reparar e conceder aos comerciantes do Porto. Esta casa, que era situada na Rua Formosa, como lhe chamava o mesmo D. João I, Rua Nova, como lhe chamava o povo, e Rua Nova dos Ingleses, como actualmente (em 1864) se chama (hoje Rua do Infante D. Henrique), estava edificada sobre um arco, que dava passagem para a Casa da Moeda, de onde se conclui que estava precisamente no local onde hoje existe aquela que está fundada também sobre o arco que é a porta da Alfândega do lado da Rua dos Ingleses. A Alfândega já a esse tempo funcionava na casa onde actualmente existe».

Arnaldo Gama refere-se à Alfândega... velha, uma de cujas portas dava para a Rua dos Ingleses e outra para a Rua da Alfândega, acrescentando que esse edifício « ainda nessa época (1474) servia também de Casa da Moeda, e de paço real, quando os reis vinham ao Porto ». E, a este respeito, dando perfeitamente a entender que se referia a um facto conhecido de toda a gente, faz o seguinte comentário:

- « Mesquinho e ridículo pardieiro, que deveras não merecia a honra de ter visto nascer dentro de si o grande Infante D. Henrique ».

Trinta anos decorridos sobre a primeira edição desse livro de Arnaldo Gama, e quando se começou a pensar na colocação da lápida comemorativa acima aludida, o prof. Joaquim de Vasconcelos escrevia:

- « Por tradição se repete que o Infante D. Henrique nasceu na rua que tem actualmente o seu nome, em certa casa antiga há pouco demolida (referia-se ao prédio da esquina das Ruas do Infante D. Henrique e da Alfândega, em cuja fachada, de velha silharia de granito, havia sido aberta no século XVI uma janela de molduras trabalhadas, tendo no peitoril as armas dos Brandões Pereiras). Como dela não ficaram nem sequer vestígios, pelo menos no antigo local, imagina-se agora uma evasiva e diz-se que a lápida comemorativa será colocada no lugar onde esteve a casa em que o Infante nascera ».

Só à luz desta informação se compreende verdadeiramente o significado do Hic natus est... da placa comemorativa; tal expressão, ao contrário do que à primeira vista poderá parecer, não pode ser interpretada como afirmação de ter nascido precisamente naquele prédio o Infante D. Henrique; quer dizer simplesmente, que o Infante nasceu numa casa que existiu mais ou menos naquele lugar. Muito pensadamente se preferiu um dúbio Aqui nasceu a um categórico - mas contestável - Nesta casa nasceu...

Trata-se de uma tradição, não só antiga, conforme vimos, mas também, e por várias razões, absolutamente aceitável.. Muito antes de ser aberta a Rua Nova ou Rua Formosa de D. João I, já no local onde existem, ainda hoje, os restos da Alfândega Velha, referidos por Arnaldo Gama, tinha D. Afonso IV mandado construir o seu Almazém - o Almazém Real ou Alfândega. Foram-lhe, com o tempo, anexando outras casas, entre as quais as que serviriam da residência aos oficiais superiores daquele estabelecimento fiscal; tudo isso constituiu, com a Casa da Moeda, um conjunto de construções que ocupava uma área relativamente vasta.

Sabe-se que a cidade do Porto, ciosa como nenhuma dos seus previlégios, não consentiu até fins do séc. XV que fidalgos e pessoas poderosas tivessem paços no burgo. E D. João I não os tinha. É pois muito natural que - respeitador, como tantas vezes se mostrou, dos direitos e regalias dos seus fiéis amigos portuenses - chegando em Fevereiro de 1394 ao Porto, com sua mulher a Rainha D. Filipa de Lencastre em vésperas de ser mãi, se tivessem ambos instalado numa dessas casas - que eram da coroa -, por certo na melhor, que, não sendo um palácio nem podendo comparar-se às Alcáçovas Reais de Coimbra e de Lisboa, não devia ter aspecto tão mesquinho que, servindo para habitação de funcionários superiores do Estado - pessoas de representação social -, não pudesse servir também para abrigar por algumas semanas o régio par.

Em 1789, o Pe. Rebelo da Costa descrevia assim o edifício da Alfândega do seu tempo:

- « Esta grande casa da Alfândega está situada no interior da cidade e imediata ao Rio Douro, onde é a geral descarga dos navios; a sua figura exterior é anterior e sem gosto algum, porém o seu interior é extenso, bem que não muito acomodado para conter em boa ordem as fazendas, quando o concurso é grande. No ano 1677, sendo príncipe e governador deste reino El~Rei D. Pedro II, foi edificada no sítio em que hoje existe por direcção do Marquês de Fronteira, gentil~homem da casa do mesmo príncipe ».

Retanhamos dois factos:

1º. Em 1788 o exterior da Alfândega já era considerado da figura antiga e sem gosto algum;

2º. A parte interior fora edificada em 1677, portanto, pouco mais de um século antes da data em que Rebelo da Costa escrevia.

Pois bem! A parte exterior da velha Alfândega, voltada à rua deste nome, é constituida por aquela casa de aspecto medieval sobre cuja fachada, em 1894 foi colocada a lápide comemorativa do nascimento do infante.
Nessa casa, e no túnel que, através dela, conduz da rua do pátio - à parte interior - da antiga Alfândega, há ainda alguns, se bem que raros, vestígios arqueológicos que permitem recuar a antiguidade da primitiva edificação ao séc. XV ou XVI. No Museu Nacional de Soares dos Reis encontram-se alguns elementos dessa espécie, recolhidos daquele prédio aquando da remodelação que ele sofreu em 1924.
Construções antiquíssimas, facilmente se compreende que poucos vestígios delas tenham chegado até n´s, tantas foram as transformações por que passaram através dos séculos os vários prédios que constituiam o velho Almazém e seus anexos! Sobretudo a reedificação da Alfândega, em 1677, deve ter feito desaparecer muita e venerável antiguidade contemporânea de D. João I, de D. Filipa de Lencastre, do Infante D. Henrique. Mas conservou providencialmente qualquer coisa de muito interessante para o nosso ponto de vista. Na volta do arco redondo do portão da Rua do Infante D. henrique, que, por um longo corredor, punha em comunicação a Alfândega com aquela rua, foi incrustada na época dessa reforma, ordenada por D. Pedro II, uma pedra com Armas Reais, da « feição usual no séc. XVIII », e que ainda lá se vê; pois à direita desse arco, a parede do mesmo prédio em que o dito portão se abre ostenta orgulhosamente um curiosíssimo brasão de pedra com as conhecidas armas de D. João I, as quais lá estão a confirmar que já no tempo desse rei ali havia casa ou casas pertencentes à Coroa Real Portuguesa.

Garantir-se que o Infante D. Henrique nasceu na casa hoje conhecida por Casa do Infante, é impossível. A ideia de se fazer uma reconstituição hipotética desse prédio ou de qualquer outro do antigo conjunto alfandegário do final do século XIV, reputo~a inviável e indefensável. Não obstante, tudo aconselha a que seja restaurada no que for de restaurar e que - conforme disse já em 1944 o ilustre prof. dr. Luís de Pina, então presidente do Minicípio do Porto - seja tomada « uma iniciativa que permita a criação de uma fundação destinada a perpetuar a memória de um dos principais fundadores da Nação Portuguesa que nasceu na cidade do Porto, e isto no local que reune o maior número de probabilidades de ter sido aquele em que tão egrégio varão viu a luz do dia ».
Este ponto de vista está agora, para honra do Porto e de toda a Nação Portuguesa, em bom caminho de realização, pois como se sabe, o Banco Nacional Ultramarino, proprietário do aludido prédio, tomou há meses a louvável e patriótica resolução de o oferecer à cidade que se orgulha de ter sido o berço de um dos mais Ínclitos Infantes da geração de Aviz.

Fonte: A. de Magalhães Basto em "O Tripeiro" - nº2 - Junho de 1958 - V Série - Ano XIV

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