terça-feira, novembro 06, 2007

Umas férias de Eça de Queirós no Porto


Nascido na Póvoa de Varzim e baptizado em Vila do Conde, respectivamente em Novembro e Dezembro de 1845, José Maria Eça de Queirós contava trinta e nove anos incompletos quando esteve no Porto, passando umas curtas férias consulares em Setembro de 1884. Trabalhava então n~A Relíquia. E ainda era solteiro.
O autor d~O Primo Basílio não gostava do Porto. Para ele só Lisboa era bela, só havia Lisboa no mundo. E, no entanto, Eça de Queirós vinha sempre que podia ao Porto. É que esta nossa terra atraía-o - e por várias razões...
Fora aqui que, desde 1855 ou 56 até 1861, Eça fizera os seus estudos secundários, como aluno interno no célebre Colégio ou Liceu da Lapa, de Joaquim Costa Ramalho, pai de Ramalho Ortigão. Desse tempo datava a grande e fraternal amizade entre os dois escritores. Mais, porém, do que essas recordações devia chamar Eça para o Porto uma razão de que só em 1884 ele teria talvez tomado consciência e que se ligava com a Quinta de Santo Ovídio - no Campo de Santo Ovídio, hoje Praça da República - onde residia a família nobilíssima dos Condes de Resende, de que cujos filhos, Luís e Manuel, Eça era particularmente amigo. Noutros tempos parece mesmo que ele se hospedava na casa desses titulares; no tempo em que escrevia As Farpas - portanto em 1871 - assim aconteceu num verão.
Nessa Quinta - que a abertura da rua Álvares Cabral fez desaparecer - vivia a mãe dos dois rapazes acima referidos, D. Maria Balbina Pamplona de Sousa Holstein, viúva de D. António Benedito de Castro, quarto conde de Resende, sobrinho do primeiro duque de Palmela - e com ela suas duas filhas solteiras Emília e Benedita.
Este último pormenor tem muita importância e merece por isso não ser esquecido.
Ora, como eu ia dizendo, 1884 Eça trabalhava n~A Relíquia - e era solteiro. Meteu o Rapozão, a tia Patrocínio - a titi, e talvez a Maricoquinhas - se esta figura de romance já tinha nascido na imaginação de Eça - meteu todas essas personagens numa maleta juntamente com uma resma de papel e deliberou vir até ao Porto, na peugada do seu amigo Ramalho, cujo destino era a Foz.
Em 16 de Agosto, porém, ainda Eça se encontrava em Lisboa. Escrevia nessa data a Luís de Magalhães, dizendo:
-«...rabisco-lhe à pressa estas linhas, para lhe perguntar se você ainda estará no Porto para a semana que vem, que é quando eu conto sair daqui (...).
« Dizem-me que o Porto está deserto como o coração sem esperança. Parece que as senhoras de Santo Ovídio se acham numa dessas praias políticas de que se fala em artigos de fundo (referia-se à praia da Granja). Parece que Oliveira Martins não se encontra tanbém no covil filosófico da Boavista. Você anuncia que vai não sei para que longínquos areais... (referia-se à praia da Costa Nova, junto a Aveiro). Então que resta do Porto? A liberdade? É pouco».

Em 21 do mesmo mês de Agosto ainda Eça continuava em Lisboa, pois de lá se dirigia por carta a Mariano Pina, que estva em Paris, remetendo-lhe um conto do conde de Ficalho para a A Ilustração. Mas logo a seguir, Eça e mais Ficalho devem ter abalado para o Norte, onde com Ramalho fizeram uma breve excursão pelo Minho antes de Eça se fixar por umas semanas nesta cidade.
Com efeito, é já de 30 do referido mês de Agosto de 1884, e do Grande Hotel do Porto, que Eça dirigia aos seus amigos Bernardo e Vicente, futuros condes de Arnoso e visconde de Pindela, uma curiosa carta da qual se deduz que ele (Eça) e mais seus amigos conde de Ficalho e Ramalho tinham visitado poucos dias antes o belo solar de Pindela, próximo de Vila Nova de Famalicão; tinham estado uma tarde a fazer «versos, no paredão de Viana do Castelo», e em Pindela haviam passado pelo menos uma noite. Da janela do seu quarto do Hotel do Porto, «com vista para a Rua de Santa Catarina», Eça de Queirós evocava saudosamente e revia na sua lembrança o vale verde~negro de Pindela, « a casa, em baixo, antiquada e grave, meio adormecida entre as árvores, e a capelinha a branquejar lá no alto». E via também, acrescenta, « entre os damascos vermelhos do nosso quarto, Ramalho, em camisa e sem lunetas, dizendo coisas sobre Schopenhauer; porque, já alta noite, não sei com que fim nem por que fantásticas razões, tivemos uma pega sobre Schopenhauer».
Realizada essa digressão entre 21 e 30 de Agosto, de curta duração ela foi, pois Eça, nessa mesma carta de 30, aos irmãos Pindela e Arnosos, anuncia que há três dias estava adoentado, e que adoecera já no Porto.
Devem portanto os três amigos, conde de Ficalho, Ramalho Ortigão e Eça de Queir´s ter chegado a esta cidade aí por 26 ou 17 de Agosto de 1884. nesse dia foram procurar Oliveira Martins.
- « Almoçamos, filosofamos, anedotizamos e historiamos com Oliveira Martins, no seu lindo covil filisófico das Águas Férreas. Depois, Ficalho partiu - e eu passei a estar doente».
Quanro a Ramalho, esse seguiria para a Foz e por lá ficara «folhetinizando».
- « Neste momento - escreve Eça na já citada carta de 30 de Agosto de 1884 aos irmãos Pindela - acaba (o Ramalho)de me falar pelo telefone, tentando-me a ir à noite contrdançar ao clube! O que indica - acrescenta Eça - que este severo crítico se lançou no redemoínho dos prazeres da Cantareira. Que a perna lhe seja leve!».
Eça parece ter-se demorado no Porto todo ou quase todo o mês de Setembro. Os primeiros tempos passou-os bastante incomodado de saúde. Em 4 de Setembro, com efeito, ainda estava hospedado no Grande Hotel e continuava doente - « doente com todas as regras e acessórios: receita de botica, médico, dieta, etc.».
Arranjara - ele o disse em mais de uma carta aos seus amigos - arranjara um prosaico «incómodo gástrico», a que também chamava «subelevação intestinal», e que atribuia à «cozinha do hotel, pèssimamente e pretenciosamente feita à francesa». Ao comunicar, dias depois, para Lisboa estes factos ao conde de Ficalho, increpou-o, tragi~còmicamente, acusando-o (a ele e aos seus correligionários, os liberais) de serem os responsáveis de se haver introduzido no País a mania da chôcha imitação e da reles tradução de tudo o que é de França, « desde as ideias até aos potages
- E agora - bradava Eça a Ficalho:
- « agora aí tem V. as consequências: o País, no lindo estado que V. sabe, e eu aqui no Porto, com incómodos gástricos há oito dias, tomando bismuto».

Compreende-se que Eça estivesse aborrecido, desolado. Além disso, pouca gente amiga encontrava no Porto nessa época para conversar. Efectivamente, a cidade estva deserta.
Ainda foi Oliveira Martins quem lhe fez mais companhia. Visitava-o às noites e conversava... sobre a antiguidade romana - o que muito serviu a Eça, bem como os livros que Martins lhe emprestou, para escrever o célebre sonho de Teodórico n~A Relíquia.
Bernardo, futuro conde de Arnoso, veio passar com Eça uma manhã, aquando duma sua descida ao Porto para comprar bric-à-brac.
Ramalho só muito raras vezes aparecia; mais frequentemente telegrafava ou telefonava « dizendo~se mergulhado nas lustrosas vagas da sua prosa», mas Eça havia sido informado por pessoa fidedigna que o «severo crítico» fora visto no Clube da Foz, enlaçado a um vestido branco, redemoínhando numa valsa a três tempos...
E mais ningém! Guerra Junqueiro estava em Viana; Antero em Vila do Conde; Luís de Magalhães na sua casa típica - no seu Palheiro - da Costa Nova; as senhoras de santo Ovídio veraneavam na aristocrática praia da Granja...
Todos passeavam todos gozavam as férias, todos se divertiam, e o pobre Eça esteve durante duas ou três semanas sózinho para ali, quase sem poder sair do seu quarto de hotel - e apesar de fraco, todo assoberbado com a revisão de provas da edição em volume do Mistério da Estrada de Sintra, quase sem ter tempo para ir piochando - como ele dizia - a sua Relíquia.
Vendo que não melhorava, escreve um dia a Oliveira martins, decidido a tratar-se como devia ser.
Declara-lhe que o clínico que o estava medicando lhe parecia um mendigo de ignorância:
- « Preciso por isso de um desses sujeitos que, no tempo de Molière, frequentavam a sociedade com uma seringa debaixo do braço, e que nós chamamos um príncipe de ciência. Conheces tu algum - perguntava Eça irònicamente duvidoso - conheces tu algum bom, tão bom que distinga realmente o intestino grosso da aorta?»
Se o conheces, fizesse a caridade de lhe mandar, pelo portador ou pelo correio, a adresse do sábio, para que ele, Eça, o fizesse chamar no dia seguinte.
Não há dúvida que os seus incómodos de saúde lhe estragaram as férias. Um dia combinara ir almoçar a casa de Oliveira Martins, mas tendo-se deitado tardíssimo - provàvelmente a trabalhar - passou a noite mal e não teve coragem de cumprir o prometido:

- « Ainda procurei levantar-me para ir a tua casa, mas vi logo que não levaria lá um convívio suportável - mas um homem tresnoitado, com o estômago estragado - sem poder comer por doença, e sem poder conversar por estupidez».

Outro passeio combinado com Oliveira Martins, mas que, pela persistência dos seus incómodos, Eça não realizou, segundo parece, foi uma visita a Vila do Conde, « a Santo Antero e ao bom Lobo » - ou seja a Antero de Quental e ao dr. João Lobo de Moura.

- « Pois apetecia-me bem esse passeio! » - confessou o escritor, desolado.

Ainda outra excursão esteve planeada em fins de Agosto e na qual Eça não tomou parte: uma excursão à Costa Nova, de visista a Luís de Magalhães. Desta vez, porém, a razão parece já não ter sido a doença, mas sim as provas tipográficas. É a esse propósito que, à última hora, Eça escreve a Oliveira Martins, ou antes « ao seu querido Joaquim Pedro»:

- « Apesar de ter retardado ontem o meu jantar até às nove da noite, não pude desbastar a minha montanha de prosa. Levar as provas para os areais da Costa Nova, não é prático - ó homem prático! Há lá decerto a brisa, a vaga, a duna, o infiníto e a sardinha - coisas essenciais para inspiração - mas falta-me essa outra condição suprema: um quarto isolado com uma mesa de pinho. Vocês (este plural demonstra que Oliveira martins ia com mais alguém, e essse era « santo Antero, sabedor de coisas de filosofia e sonetista », a quem Eça manda um abraço no fim da carta) vocês, com tipoia na estação, barco no rio foguetes à espera e talvez literatos locais - não podeis faltar hoje. Eu é que, com todas estas folhas de provas inumeráveis como as do bosque, não sei mesmo se poderei ir amanhã, quinta~feira, a tempo».

Mas dentro de breves dias lá contava aparecer. E acrescentava:

- « Amanhã, em todo o caso, querendo Deus, saio à noite deste infecto Porto. Talvez sexta~feira fique na Granja, a respirar o ar puro», etc.

Efectivamente, assim aconteceu. Eça foi para a Granja, com tensões de estar com o Manuel um ou dois dias - conforme comunicava para a Costa Nova a Luís de Magalhães, numa carta em que, alegando a montanha de provas que sobre ele desabara, se desculpava de não ter podido tomar parte na já citada « bela peregrinação de amizade », e prometia ir ver o seu amigo, talvez no domingo seguinte.
O Manuel, com quem Eça tencionava passar na Granja um ou dois dias era, nem mais nem menos, D. Manuel de Castro Pamplona, conde de Resende, e irmão de D. Emília de Castro Pamplona, a ilustre Senhora com quem o Escritor não tardaria a unir os seus destinos pelo casamento - feliz desfecho este que, aliás, naquele tempo ainda era um mistério para toda a gente... excepto talvez para Emília e José Maria...


Fonte: A. de Magalhães Basto em " O Tripeiro" nº. 4 Agosto de 1958 - V série - ano XIV

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