sexta-feira, novembro 02, 2007

A Bengala - Vida e morte de uma indústria Portuense

Foi sem dúvida o fabrico das bengalas uma apreciável indústria portuense. Como elementos associados estavam os ourives, aqueles que se haviam especializado no fabrico de castões de prata e outros ornamentos destinados às bengalas.Neste fabrico e comércio distinguiu-se a firma José Rodrigues Teixeira & Fºs., na Rua do Loureiro, fundada no ano de 1760.
A colónia portuguesa nas terras do Brasil, quando os seus membros vinham ao pátrio lar, não deixavam de fazer aquisição de castões de prata, para no seu retorno brindarem compatriotas e amigos. Tão desenvolvido estava o comércio dos castões de prata, que era vulgar a sua venda nos bazares e lojas de ourives.
Além das bengalas nacionais - cujo empório de fabrico e venda era a cidade do Porto -havia as badines vindas de França, as quais eram postas no mercado em estabelecimentos de Modas, como se vê deste anúncio, de há um século:
«Pelos navios Três Graças e Alerta, ùltimamente chegados do Havre, receberam-se neste estabelecimento (Rua das Hortas, nº. 7) chapéus de sol e bengalas...»
Os fabricantes de castões de prata, da cidade do Porto, para melhor promoverem a sua venda, tinham uns cartazes fotográficos, onde, em fundo preto, brilhavam os modelos mais curiosos, que iam dos castões direitos às típicas carrancas, cinzeladas a preceito. A colecção de moldes nas oficinas dos prateiros formavam uma galeria variadíssima, desde o gosto singelo ao exótico, entrando algumas vezes neste fabrico a incrustação de pedras, no realce de brasões e monogramas.
Não há dados seguros sobre os primórdios das indústria das bengalas. sabe-se todavia que, em 1907, se fundou uma fábrica de bengalas, na Rua da Vitória. Ainda ali marca a sua existência, amarrada ao fabrico de tacos e outras peças de bilhares, para não sossobrar totalmente.
Finalmente, em 1921, esta fábrica era anexada à «Fábrica de Guarda-Sois Portuense, Lda» - a qual em boa hora surgiu, por iniciativa dos industriais Francisco Costa, valeriano Mota e Benjamim Costa, que honraram sobremaneira a sua profissão.

Tem a bengala, como peça ornamental da indumentária, uma história curiosa. Enquanto a espada, cingida à cinta, obedecia à pragmática da nobiliarquia, a bengala, conduzida na mão, era usada quase sem distinção, por quem a queria.
Quase sem distinção, disse eu, pois embora fosse a bengala compnheira diária da fidalgaria passeante, a verdade é que foi muito usada, em domingos e dias~santos, pelas gentes das camadas populares.
É famosa a galeria dos janotas portuenses que usavam bengala. Além destes, destacavam-se os pisa~flores, de badine, em atitudes estudadas, e os notáveis da terra, sempre flamantes, de bengala em punho.
Quando em 1865 se fundou o «Palácio de Cristal», de saudosa memória, os passeantes dos jardins públicos desdobravam-se para ali. Apreciar aspectos fotográficos, antigos, dos jardins do Porto, particularmente os do «Palácio de Cristal», é ver em pleno triunfo a exibição da bengala. Ela foi, então, complemento de toilette, atributo de elegância e distinção.
Na verdade, muitos que a usavam, faziam-no com arte, com galantaria.

Andam descritas certas figuras que, não só se notabilizaram pelo talento, como pelo uso da bengala.
Joaquim Costa diz que Eça de Queirós «usava uma bengala de castão de ouro, um pouco discreto, que frequentemente metia debaixo do braço, com um ar simples e natural».
Batalha Reis havia de reparar no mesmo escritor o uso de «uma badine muito delgada, a qual fazia girar nervosamente».
Ramalho Ortigão, agora monumentalizado, lá está acompanhado com sua bengala, não aquela «bengala de cana branca, com castão de muleta de marfim», celebrada por Ricardo Jorge, mas sempre uma bengala firme e forte, como que a denunciar~lhe a galharda altivez.
Júlio César Machado, «abotoado na sobrecasaca irrepreensível, chapéu alto... luva bem afeiçoada à mão, apoiado à bengala amiga», é observado por Schwalbach.
Alberto Pimentel repara no matemático Pedro de Amorim Viana, « ... sujíssimo, rotíssimo, sempre com um chapéu alto imundamente oleoso, com botas gretadas e cambas, de bengala na mão... ainda que chovesse a cântaros».
Com efeito, a bengala era companheira fiel dos homens, quer a usassem como índice de certo tipismo de talento e distinção, quer a trouxessem por claudicante necessidade ou propósito contundente.
Camilo Castelo Branco, que a estatutária já havia envolto na sua capa longa, estva destinado a ser celebrizado em pintura mural na Câmara desta cidade, com porreto, instrumento de agressão que supriria a função do seu famoso bengalório.

A propósito se conta um incidente público em que foram proptagonistas Camilo e os «irmãos Guedes», desta cidade:
«... No meio da Rua de Santo António encontraram a Camilo Castelo Branco, e com uma grossa bengala lhe descarregaram tal golpe na cabeça, que lha abriram. O ferido, atordoado com a pancada, tirou do bolso uma pistola que consigo trazia carregada, e deu um tiro, que feriu de leve numa perna a um dos Guedes. Acudiu gente, e força armada, que à ordem do governador civil, o conde da Ponte, levou presos para o quartel do Carmo os dois irmãos Guedes, sendo o Camilo Castelo Branco, gravemente ferido, mandado para sua casa pelo mesmo governador civil...

Comentário Nacional (Ano de 1852):

«Veremos em que terminará esta desordem».
(Mss. «Biblioteca M. do Porto»)


Camilo, desta feita, preferiu à sua grossa bengala um revólver. No registo da ocorrência, é o notável romancista distinguido com a seguinte nota: - «Este sujeito é assaz instruido».

Eduardo Garrido, escritor teatral descrevendo a psicologia da bengala, fez-lhe em monólogo, esta refeência crítica:

... eu conheço na rua
O homem pela bengala.
Pela bengala - acreditem -,
É que o homem se conhece!
........................
P´ra mim é ponto de fé:
Eu vendo uma bengala,
Sei logo o dono quem é!


Em rigor, nem sempre assim era, porquanto, nos bengaleiros domésticos não seria raro encontrarem-se muitas e variadas bengalas, que iam da badine delicada, ao bengalório grosso, tira~teimas.
É que, por vezes, havia quem ajustasse o tipo da bengala ao gosto da gravata ou fato que vestia.
Acabado que foi o reinado da bengala - tanto da minha simpatia - não lhe façamos o agravo de lhe descarregar sobre a memória o epíteto de muleta.
Sinal de enfermidade, de uma vez ou outra o foi; mas brilhou pela ajuda à linha rectilínea do corpo daqueles que bem a usavam, de cabeça erguida e espinha direita - com aprumo.
Quer fosse pendurada no braço, gingada na mão, apertada no sovaco, erguida como espada; quer ritmasse no lajedo ou fosse silenciosa, atras das costas, era sempre uma companheira apreciável, a quem a mocidade viril e a velhice caduca muito apreciavam seus méritos.
Foi-se, porém, à cova, a moda de usar bengala. Se ainda por aí alguma bengala aparece, é porque ainda há descendentes da nobre estirpe que a soube usar.
Entretanto, constata-se a morte de uma indústria que o Porto criou, - indústria que teve como colaboradores activos os prateiros da mesma cidade, e os obreiros de Baião, que a manufactura bengaleira portuense fez brotar nas terras montesinhas do Douro.

Fonte: A.L. de Carvalho em o jornal "O Tripeiro" V série - Ano XIV Porto 1958-1959

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